quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Em tempos criei vários personagens, seria sobre eles que escreveria, numa altura que quis escrever um livro... ficou por acontecer!  Sobram poucos textos dessa altura, este é um dos poucos...


"Um dia acordou e de manha enquanto passava água pelos olhos, pensou na vida, olhou-se ao espelho e antes ainda de desfazer a barba, reviu várias situações por ele vividas. Sentiu-se velho. Pensou no que tinha : uma conta no banco, poucos euros guardados e alguns deles herdados, uma casa modesta e a precisar de obras e de atenção em vários cantos, um carro, já com idade de clássico, parado sem inspecção há pelo menos 3 anos e que apodrecia na garagem em frente à casa.
Já com metade do pequeno almoço tomado, enquanto as segundas torradas aqueciam no aparelho, passeou-se pela sala, olhou em volta e demorou-se pelas fotografias, dezenas delas, pequenas, grande, a cores e não só, de gente, de amigos, de família, de locais e cidades. Sentiu-se velho.
Voltou as torradas e ao copo de leite, pegou nas caixas de remédios e aviou a meia dúzia habitual e deu baixa no calendário, para não se esquecer. Sentiu-se velho, como o ritual.
Desceu à rua, directo ao café. Entrou, sentou-se e pediu um cheio com adoçante e perguntou pelos jornais. Viu um a um, demorando eternidades na necrologia, tentando lembrar-se se conhecia alguém verdadeiramente ou se era apenas caras conhecidas, iguais a tantas pelas quais passa diariamente na rua. Sentiu-se velho, ao ver a idade das pessoas que constavam naquela página.
O resto da manha, foi passada na rua, na praça de volta dos pombos e sentado no jardim a contar primeiro carros vermelhos, depois pessoas de chapéu ou boné, há muito que escolhia "alvos" difíceis, carros vermelhos, numa zona de pouco movimento e pessoas de chapéu ou boné nos dias de hoje, são exemplos raros, claro que os miúdos, que passam por ele, não contam, esses não são gente, são apenas projectos de ... e muitos deles, maus projectos... não possuem uma boa estrutura base, não sabem respeitar os mais velhos, não sabem falar baixo, dizem as asneiras e limpam-se ás mangas das camisolas e cospem-se ao falar.
O almoço foi na Rua, na pensão das 3ªs feiras. Pensou nisso, enquanto acabava a sopa e esperava pelo arroz de tomate com pataniscas. Era um "animal" de hábitos, almoçava cada dia num sitio diferente, num circulo vicioso, em que conhecia de há muito as ementas da zona.
A tarde foi passada, como muitas outras, contou carros pretos e pessoas com bicicleta, alimentou os pombos mais um pouco e passou ainda pelo mini-mercado, precisava de leite e manteiga para o pequeno almoço do dia seguinte.
Passou por casa onde deixou o saco das compras e antes de voltar a sair para jantar, viu o preço certo, saiu depois em seguida, directo à mesma pensão onde almoçou, sentou-se e pediu a sopa, prato habitual de todos os dias à noite. Sopa e mais meia dúzia de comprimidos, pacientemente contados e controlados no calendário antes de sair de casa. Viu o telejornal e esteve especialmente atento à previsão do estado do tempo, para os próximos dias. Não que a chuva o incomode ou atrapalhe os planos e altere as rotinas, afinal os dias são sempre iguais, faz sempre as mesmas coisas. No fim de jantar, seguiu directo para casa, um velho precisa de descansar, atira enquanto paga e se despede com um ate depois.
Chega a casa, passa os pés por água quente, calça umas meias de lã e as pantufas, veste o pijama enquanto coloca água p/ chã a aquecer. Toma o chá, enquanto pensa no que vai fazer amanha e prepara a roupa para vestir logo que acorde e se arranje, todas as noites a preocupação é a mesma, prepara com cuidado a roupa que veste no dia seguinte e coloca de lado a roupa para lavar, que a vizinha do 1º frentes, vem buscar aos sábados ou as vezes aos domingos.
Sentiu-se velho, quando se sentou no sofá, para ver um pouco de televisão, sentiu-se pior quando se lembrou e contou o número de pessoas com quem falou durante o dia, contas fáceis, uma mão chega : o homem do café de manha, a senhora da pensão, foi a mesma a servi-lo almoço e ao jantar, a menina do mini-mercado e não se lembra de mais ninguém. Sentiu-se um velho e chorou, ao lembrar-se que não tem sequer 50 anos e vive assim, alheado do mundo, infeliz e solitário há quase 15, desde que a mulher o deixou e pediu o divorcio. Desde então, tem envelhecido, feito vinho do porto em cascos de carvalho, ele tem-no feito ali em casa, isolado do mundo e em rotinas viciadas e repetidas vezes sem conta, faça chuva ou faça sol, as poucas coisas que muda é o local onde almoça e janta, consoante o dia da semana e se vai ao café de manha ou durante a tarde, de resto os dias são iguais, são sempre iguais.
Adormeceu a chorar."

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